Michelle Ferreira de Oliveira
Professora por escolha, por decisão e por teimosia
Há muito tempo venho ensaiando arriscar alguns comentários acerca da situação conflituosa e angustiante que tenho contemplado em nosso sitiado Estado de Goiás. Admito que, como professora efetiva da Rede Estadual e, como professora interessada na formação de cidadãos críticos e pensantes, sinto-me absolutamente indignada, revoltada e enojada (acreditem esse é o termo: nojo), de manipulações baratas e inconseqüentes por parte daqueles que nunca pisaram em uma sala de aula na posição de professor.
É sempre bom rememorar e reconhecer que para existir o médico, o advogado, o fisioterapeuta, o jornalista e tantos outros profissionais que merecidamente recebem e devem continuar a receber seus méritos, foi necessária a existência de um professor. Seria lógico que, então, aquele que precede à formação profissional final escolhida por esses indivíduos em diferentes áreas fosse reconhecido ao menos de forma mais humana do que o tratamento despojado a essa classe. Mas, infelizmente, a (i)lógica estabelecida é reflexo das concepções educacionais que temos e que, historicamente foram enraizadas e arraigadas em muitos de ‘nossa espécie’ e, que vão se perpetuando solidamente por gerações.
Durante muitos anos, me questionei sobre qual a razão, de um professor tão competente, com tanto argumento e consolidação teórica, retornar à sala de aula e repetir a lógica estabelecida. Busquei autores como o Brandão (2002); Brandão e Freire (2005), Tardif (2002), Machado (2011) e tantos outros, na tentativa de compreender as diferentes culturas, a formação docente, a prática docente, o trato pedagógico, o que é ensinar, o que é aprender, como lidar, de onde veio tudo isso e para onde vai, enfim, esse ‘mundinho’ chamado educação. “Mundinho” esse, que foi aos poucos se transparecendo cada vez mais complexo e perplexo. Envolto por muitos personagens que, faceiramente, compõem um complexo de histórias que se entrecruzam, se convergem e muitas vezes se divergem.
Essas questões promovidas dentro desse “mundinho” vão muito além da sala de aula, além da formação inicial, além da construção familiar, transpassam as questões sociais, políticas, econômicas, culturais, intelectuais e sei lá, talvez até mesmo espirituais (para os que acreditam em outras dimensões) e as emocionais. Toda essa tentativa de compreensão acerca desses conflitos reais do cotidiano, já gerou artigos, publicações, estudos e até mesmo meu trabalho de conclusão final de curso na graduação refletia sobre isso. Tinha tudo para minhas considerações tão bonitas e compreensivas sobre todo esse envolto acima pontuado responder minha questão inicial: por que o professor volta para sala de aula e atua com uma lógica mercadológica ou ainda, por que ele reproduz conhecimentos se aprendeu com os grandes teóricos da educação que, é preciso partilhar saberes, construir significados e formar cidadãos que sejam capazes de pensar e não só reproduzir?
Não foi preciso ir muito longe, nem passar vinte ou trinta anos em uma sala de aula para entender o drama de muitos dos meus colegas. Não retiro a responsabilidade que temos e, o compromisso que assumimos aos nos tornamos educadores, mas, é preciso ter claro que nem todos são professores e, assim como em toda e qualquer profissão, ou mesmo em várias circunstâncias da vida, não podemos pegar um determinado grupo colocar num saco e dizer “vocês são todos iguais” porque definitivamente, isso tanto geneticamente quanto cultural-social e historicamente, já é mais do que comprovado que não é fato. Somos diferentes, com histórias únicas e, portanto, devemos ser tratados assim, onde quer que seja. Que há aqueles que estão na luta por ideal e aqueles que já se cansaram da batalha, bem como, aqueles que nunca deveriam ter entrado nela.
Ressaltando então, a parte de professores interessados em transformar nossa sociedade, com ideais políticos, culturais e todos mais que forem possíveis, lamento dizer aos meus professores da graduação que não tiveram essa sensibilidade (talvez porque já estivessem há tempos demais longe de uma sala de aula de ensino básico ou ainda àqueles que nunca passaram por lá, mas, ainda insistem em formar professores e falar de experiências docentes) que, se talvez tivessem considerado que, os espaços educacionais não são jardins cheios de flores, ao contrário, são espaços cheios de grades para não serem roubados (a velha lógica invertida da sociedade onde a prisão é para os que deviam ser ‘livres’), que não há material suficiente para o cotidiano, que as salas de aula são depredadas pelos próprios alunos da escola que, não se sentem parte dessa construção e estão ali à força porque alguém disse que, se ele não tivesse estudo ele nunca seria alguém e, embora estejam em um espaço que devesse levar em consideração que ele é alguém único, com uma história singular e perspectivas, ainda assim é tratado como ninguém... que esse espaço escolar há muito tempo se tornou nitidamente dividido entre o espaço para os bons e com poder capital que irão ocupar os cargos que hoje possuem maior esmero e reconhecimento no futuro profissional e o espaço que resta para os reles mortais disputarem as poucas vagas existentes em salas superlotadas que protagonizam a formação em massa e o ‘aprenda quem puder aprender e o que puder aprender é isso que temos’ e que, com muita sorte, com boas perspectivas encerrem o ensino médio, enfim, se tudo isso tivesse sido considerado, por pessoas que muitas vezes marcaram significativamente a formação docente inicial de meus colegas, talvez hoje, o despeito e desrespeito à prática docente poderia ser um pouco menor.
Falo isso, com tranqüilidade e com firmeza, pois, há também que engrandecer agradecer e reconhecer àqueles que, desde o início não foram omissos em demonstrar que o “pouco caso” dado à educação não é de hoje, que a desvalorização profissional ocorre há muitos anos, que viveram na pele a experiência de remar contra a maré e que ser professor do ensino básico exigiria hoje – no mínimo – insalubridade. Sei que esses poucos professores universitários que fizeram esse tipo de colocação em sala, não foram bem vistos e nem bem quistos muitas vezes. Fizeram muitos acadêmicos desistirem das licenciaturas e procurarem outra profissão, mas a eles... meu muito obrigada. Obrigada por evitar que mais pessoas inconscientes e sem decisão política (e isso não se refere à partido pois não faço e nem defendo partidos políticos) adentrassem via concurso em um lugar público, apenas para possuir a ‘estabilidade financeira’ e não fazer a menor diferença. A esses professores que embora mostrassem que, a realidade era árdua, também mostraram que era necessário acreditar que podíamos modificar histórias, meus sinceros agradecimentos.
Mas, também preciso agradecer às célebres frases pronunciadas por nossos ‘queridos’ representantes do governo (e ao que me parece, isso é meio comum entre esses representantes tanto no âmbito municipal, estadual e federal), eleitos por um povo sem memória – mas é bom ressaltar que agora temos comunicação virtual e nas próximas eleições, nem que seja para ‘twittar’ iremos lembrar seu nome com prazer... para rememorar os célebres pronunciamentos como “quer ser professor, faça por amor”, “professor não vai ficar rico mesmo”, entre tantas outras pérolas... como o voto para manter o Estado estável e não prejudicar o orçamento, mas, tratar anos de estudo como se nada fosse.
É... realmente, se o professor recebesse o que realmente ele merece (isso da educação básica à superior), por mérito, o governo (municipal, estadual e federal) teria duas opções: realmente ir a falência ou ter que deixar de lado suas milhares de regalias, seus milhares de assessores, seus 14º e até 15º salários, seus jatos particulares custeados pelo dinheiro público, suas diárias exorbitantes, suas viagens, seus auxílios ternos e seus salários que (ufssss) o meu não deve ser nem o dízimo do que muitos deles recebem... para que o salário do professor fosse cabível à sua responsabilidade. Não sou nenhuma economista para fazer esse cálculo, mas, com certeza, essa troca seria bem mais justa para nosso país.
Mas, diante desses poucos apontamentos que fiz, penso que a grande questão não é o trato pedagógico que o professor tem ou não tem dado; não é o índice do IDEB da escola e toda a preocupação que se demonstra nas propagandas com os estudantes; não é a redução da carga horária ou a mudança da grade curricular sem comunicar, dialogar ou mesmo levar ao conselho e, consequentemente, a minimização/desconsideração sobre o valor daquele conhecimento; não é o fato de pagar um bônus salarial para os professores assíduos e não publicar o fato de que essa conta é feita com base em um salário de professor que cumpre as 40h no Estado e, que essa bonificação é realizada somente uma vez ao ano (com promessa de ser por semestre), e publicar aos quatro ventos que, um professor doutor na rede poderá chegar a ganhar até 5.200,00, mas, não deixar claro que esse valor será uma ou duas vezes por ano com as bonificações e, caso esse professor cumpra 40h, além de informar que professores de apoio (que tanto lutamos para poder ajudar no processo de inclusão dos alunos especiais) não recebem essa bonificação, assim como outros professores que estejam em funções diversas, porém, necessárias ao funcionamento da escola; não é o fato de não tornar público que, os professores como eu, que trabalham em escolas que paralisaram (nas duas manifestações que houveram) receberam 80% do ‘mérito’ que lhe cabia, pois, a escola parou dois dias para movimentações (ainda que não fosse o dia daquele professor na escola, a escola foi punida); não é o fato de tratar professores como meras máquinas reprodutoras mandando para as escolas o planejamento todo pronto para padronizar o que os alunos vão estudar e, se caso tenham que mudar de uma escola para outra, acompanhem os conteúdos; não é o fato de mudar a grade curricular e mandar que as escolas ofereçam disciplinas optativas por meio de projetos, sem haver uma estruturação e um preparo para isso; não é o fato de vários professores terem que se dirigir à subsecretaria para procurar escola, pois, ficou sem aula ou teve sua carga horária reduzida por redução de turma ou mesmo, por redução de quantidade de aulas na semana de disciplina x ou y; não é o fato de receber pressões vindas sabe Deus de onde que, se o professor faltar por qualquer razão que seja, terá seu nome publicado em um mural exposto para todos; não é o fato de perceber que estão tentando tampar o sol com a peneira e ler declarações do tipo: “"Vim para o governo, criei um plano de carreira dos funcionários administrativos da Educação, valorizei, criamos a progressão vertical, e valorizamos como nunca a carreira dos professores. Antes, era desvalorizada. Este plano agora foi um ajuste para cumprirmos o piso nacional. Se não tivéssemos feito esse ajuste, não daríamos conta de cumprir o piso por conta do efeito cascata. Teríamos um impacto de R$ 800 milhões na folha de salários só da Educação em 2012. Então fizemos novo plano para termos condições de pagar o piso com valor, inclusive, acima do piso nacional, resgatando um importantíssimo compromisso de campanha. Não acredito que os professores tenham prejuízos na carreira. Uma coisa é ter um plano. Outra coisa é um plano inexequível. O plano que aprovamos será exequível, vamos dar aumentos, cumprir data-base, pagar os professores. O plano de Reforma da Educação, contempla 24 ações, todas focadas no desempenho e também no mérito. Desde este ano, nós criamos um plano de resultados com prêmios para os professores. No ano que vem, vamos aumentar o prêmio para os professores assíduos em sala de aula, linkar ao desempenho deles, melhoria dos indicadores do MEC e do próprio governo do Estado. Vamos criar um prêmio para os alunos que tiverem o melhor desempenho na avaliação do Ideb; criar um prêmio para as escolas. Uma série de mecanismos que valorizem as escolas, os professores e os alunos que se sobressaírem".
Isso tudo aí... é fichinha! E, penso eu, conseqüência de todo o processo histórico coronelista implementado com tanta eficiência no Brasil. Mas, as muitas questões que tenho nesse momento são: até quando iremos aceitar de braços cruzados tamanha eficiência em ‘destroçar’ nossa sociedade? Até quando um bônus semestral vale mais do que uma carreira conquistada com tanta luta por pessoas que sofreram tanto e à custa de tantas greves? Até quando prêmios nos comprarão? Que mérito é esse? Até quando o IDEB vai ser o ponto chave para as escolas poderem receber benefícios e não ao contrário, como deveria realmente ser? Até quando seremos motivo de piadinhas e gozações por acreditar que é possível mudar algo, ou por embora não concordarmos com nossos salários perseveramos naquilo que escolhemos? Até quando teremos que enfrentar nas nossas escolas uma sociedade que já é marginalizada pelo Estado e ter que lidar com tudo isso sozinhos? Até quando teremos que lidar com drogas, violência e todo hall proporcionado atualmente pelo cotidiano escolar? Até quando a culpa vai ser sempre do professor e sua (in)competência? Quando os padrões de notas no IDEB, Provinha Brasil, ENEM, ENADE, serão equivalentes aos padrões estruturais e as condições físicas para os professores ministrarem suas aulas? E, talvez, a mais inquietante nesse instante para mim: quando as pessoas irão abrir os olhos e perceber que estamos vivendo uma ditadura disfarçada, engalfinhados por uma estrutura perigosa, limitante e contrária à transformação social e valorização do conhecimento cultural local, e o pior... Conformados com essa estrutura?
De todas as dúvidas, certezas e últimas consolidações na organização estruturacional, curricular e educacional em nossos Municípios, Estados ou País, só me resta uma coisa... a esperança de que, em algum momento, essa passividade social que está instaurada em todas as áreas possa se tornar manifesta. Sem falsos saudosismos, mesmo porque, não vivi a ditadura militar e nem fui guerrilheira – acho que não me encaixaria nesse perfil, e quando nasci ela já tinha acabado, mas, que as pessoas possam falar dos problemas que são fato, sem terem que ser noticiadas, notificadas ou ameaçadas com falas, falácias e processos, que possam perceber que não temos armas, nem soldados nos cercando e nos vigiando, mas, que vivemos a ditadura psicológica e epistemológica, e é preciso um basta nisso! E, enfim, acreditar, ter a esperança que algum dia, em algum momento da história do Brasil, as pessoas possam entender que escola não é empresa, mas, sim um espaço de construção social e, que a educação é sim... definitivamente, o meio para possibilitar transformações sociais.
Sou professora sim, por paixão, por escolha e por teimosia! Sou professora da rede pública e, não quero esmolas. Quero condições dignas de trabalho, quero formação continuada e valorização do meu trabalho. Quero acima de tudo RESPEITO, respeito a minha intelectualidade, respeito a minha formação, respeito àqueles que me ensinaram que Educação não se vende, e muito menos minha dignidade tem um preço. Respeito à minha liberdade de expressão e comunicação.
BRANDAO, C. R. . Paulo Freire, educar para transformar: fotobiografia. São Paulo: Mercado Cultural, 2005. 140 p.
BRANDAO, C. R. . A Educação como Cultura. 3. ed. Campinas: Mercado das Letras, 2002. v. 1.
MACHADO, M. M. ; GARCIA, L. T. . Educação ao longo da vida concebida pela lente de quem a fez no Brasil. Cadernos de Pesquisa em Educação PPGE-UFES, v. 17, p. 1-16, 2011.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.